Em La Rioja, foi criada uma moeda emergencial chamada ‘chacho’. A medida foi adotada em meio à falência do território, que sofreu os impactos do fim da transferência de recursos pelo governo argentino. Vendedor mostra notas de ‘chachos’ em uma casa de câmbio para convertê-las em pesos argentinos, em La Rioja.
AP Photo/Natália Díaz
Parecem dinheiro, cabem nas carteiras como dinheiro e o governador promete que serão usadas como dinheiro. Mas essas notas coloridas (veja imagem acima) não são nem pesos argentinos nem os requisitados dólares americanos — moeda preferida de quem vive na Argentina.
São, na verdade, “chachos”, uma moeda emergencial criada pelo governador de La Rioja, uma província do noroeste do país. O território entrou em falência quando o presidente Javier Milei cortou as transferências de recursos para as províncias, parte de um programa de austeridade sem precedentes.
“Quem poderia imaginar que um dia eu iria querer ganhar pesos?”, disse Lucía Vera, uma professora de música. Ela fez a declaração ao sair de uma academia cheia de funcionários públicos que esperavam para receber seu bônus mensal de chachos no valor de 50 mil pesos (cerca de US$ 40).
Na capital La Rioja, adesivos informam ao público que os “chachos são bem-vindos”. As frases são vistas em redes de supermercados, postos de gasolina e até em restaurantes elegantes e salões de beleza.
O governo local garante uma taxa de câmbio de 1 para 1 com pesos e aceita chachos para pagamento de impostos e contas de serviços públicos.
LEIA TAMBÉM
Argentina: pobreza dispara e atinge mais da metade da população
Fim da euforia? Como está a economia argentina com o governo Milei
Inflação argentina fica em 3,5% em setembro e acumula 209% em 12 meses
Mas existem desvantagens: os chachos não podem ser usados fora de La Rioja e apenas empresas registradas podem trocá-los por pesos. A troca pode ser feita em pontos estabelecidos pelo governo.
“Preciso de dinheiro de verdade”, disse Adriana Parcas, uma vendedora ambulante de 22 anos que paga seus fornecedores em pesos. Ela havia acabado de recusar a venda a dois clientes que queriam comprar perfumes com chachos.
As notas trazem o rosto de Ángel Vicente “Chacho” Peñaloza, líder famoso por defender La Rioja numa batalha do século 19 contra as autoridades nacionais em Buenos Aires. Um QR Code na nota leva a um site que expõe Milei por se recusar a transferir a parcela de fundos federais para a província.
‘Recebemos chachos’, diz placa em um açougue na província de La Rioja, na Argentina.
Associated Press
Após assumir o governo, em dezembro de 2023, Milei rapidamente impôs um choque fiscal como tentativa de reverter décadas de gastos populistas que deixaram a Argentina com déficits monumentais.
Os cortes apertaram as 23 províncias do país, mas desencadearam uma crise total em La Rioja, onde a folha de pagamento pública representa dois terços de todos os trabalhadores registados e onde os impostos redistribuídos pelo governo federal sustentam 90% do orçamento.
Com menos de 384,6 mil habitantes e pouca indústria além de nogueiras e oliveiras, La Rioja recebeu mais fundos federais discricionários do que qualquer outra província no ano passado, exceto Buenos Aires, onde vivem 17,6 milhões de pessoas.
No entanto, a taxa de pobreza na província é de 66%, resultado, segundo críticos, de um sistema clientelista há muito utilizado para apaziguar grupos de interesse em detrimento da eficiência.
Posição ousada
Enquanto as reformas de Milei forçaram outras províncias a apertar o cinto e a despedir milhares de funcionários, o governador Ricardo Quintela – uma figura influente no movimento peronista há muito dominante na Argentina e um dos mais ferrenhos críticos de Milei – se recusou a absorver o descontentamento com a austeridade.
“Não vou tirar o prato de comida do povo de Rioja para pagar uma dívida que o governo nacional tem”, disse Quintela à Associated Press, que retratou o seu plano de impressão de chachos como uma posição ousada frente a 10 meses de queda dos salários, aumento do desemprego e aprofundamento da miséria sob o governo de Milei.
La Rioja se declarou inadimplente no pagamento da dívida em fevereiro e agosto. Em setembro, um juiz federal de Nova York ordenou que a província pagasse quase US$ 40 milhões em indenizações a detentores de títulos norte-americanos e britânicos.
A Suprema Corte da Argentina está analisando o caso da recusa da província de cobrar dos consumidores preços altos de energia elétrica após Milei ter retirado os subsídios.
“Digamos que existe um caminho diferente daquele traçado pelo atual presidente”, disse Quintela. Para ele, Milei está propondo um caminho bastante difícil “pela crueldade das políticas que aplica”.
Ele parecia convencido, em um momento em que os índices de aprovação de Milei caíram abaixo dos 50% desde que o economista radical assumiu o poder.
Mas, como dizem Milei e os seus aliados, a alternativa de Quintela oferece pouco mais do que um regresso ao terreno peronista habitual de gastos desenfreados – e insolvência – que levou à crise total que o seu governo herdou.
“Vocês estavam acostumados a ter a gravata amarrada e os sapatos engraxados. Agora, vocês que têm que fazer o nó”, disse o secretário de imprensa de Milei, Eduardo Serenellini, aos líderes empresariais em uma recente visita à província. “Quando o dinheiro acaba, acaba.”
Serenellini pegou uma nota de chacho e a sacudiu como um fiapo.
Vendedor de ovos mostra seus ganhos em ‘chachos’ após um dia de trabalho na província de La Rioja, na Argentina.
Associated Press
Sem resgate
A manobra do governador Quintela na remota província teve pouco efeito nas finanças federais da Argentina. Mas isso poderá mudar se mais províncias com falta de dinheiro seguirem o exemplo, como aconteceu durante a terrível crise financeira do país em 2001.
À época, um plano de austeridade igualmente brutal fez mais de uma dúzia de províncias imprimirem às pressas suas próprias moedas paralelas.
No entanto, ao contrário de duas décadas atrás, quando o ex-presidente peronista Néstor Kirchner colocou fim ao caos ao trocar as moedas provisórias “patacones”, “cecacores” e “bocanfores” por pesos, o presidente Javier Milei se recusou a resgatar La Rioja.
“Não seremos cúmplices de pessoas irresponsáveis que procuram enganar as pessoas com a falsificação de papéis”, afirmou Milei em uma entrevista recente ao canal de TV argentino Todo Noticias.
Mas o presidente reconheceu que não poderia impedir La Rioja de fazer o que queria, considerando que a constituição da Argentina permite esse tipo de solução financeira.
Emissão de chachos
O chacho entrou em circulação em agosto, após o Legislativo de La Rioja aprovar planos para emitir 22,5 bilhões de pesos da moeda para ajudar a cobrir até 30% dos salários do setor público.
Com o rendimento médio de La Rioja abaixo de US$ 200 por mês e lojas fechando devido à falta de clientes, as autoridades distribuíram chachos no valor de 8,4 mil milhões de pesos em bônus mensais em agosto e setembro. A medida busca estimular a economia local e ajudar os trabalhadores a lidar com uma inflação na casa dos 230%.
Para incentivar o uso do chacho, as autoridades prometem pagar juros de 17% sobre as notas mantidas até o vencimento, em 31 de dezembro.
“Quanto mais nos aproximamos do vencimento, mais a confiança no chacho se consolida”, disse Carlos Nardillo Giraud, assessor do tesoureiro provincial.
Açougueiro aceita ‘chachos’ como forma de pagamento em La Rioja, na Argentina.
Associated Press
A maioria dos funcionários públicos entrevistados nas filas de chacho que se espalhavam pelas calçadas de La Rioja disseram que queriam se livrar dessas contas o mais rápido possível.
“O chacho é uma alternativa para pessoas que não conseguem chegar ao fim do mês”, disse Daniela Parra, professora de física de 30 anos, com os braços cheios de chachos e pronta gastar tudo no supermercado. “Mas não sabemos o que vai acontecer no próximo mês.”
Nas ruas, os comerciantes dizem que se sentem em um beco sem saída. Não aceitar os chachos significa afastar clientes com novo poder de compra em plena recessão. Mas aceitar a moeda significa encher o caixa com dinheiro sem valor para fornecedores estrangeiros.
“É um sistema onde você é forçado a depender [do governo]”, disse Juan Keulian, diretor do Centro de Comércio e Indústria de La Rioja. “Não há opção em um lugar como este.”
Fonte da Máteria: g1.globo.com