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Ayrton Montarroyos segue elevado, indomado e rigoroso no percurso dissonante do álbum ‘A lira do povo’


Cantor alinha 26 músicas em três suítes de disco conceitual em que refaz o caminho doído do homem que sai do sertão para a cidade, passando pelo mar. Capa do álbum ‘A lira do povo’, de Ayrton Montarroyos
Luan Cardoso
Resenha de álbum
Título: A lira do povo
Artista: Ayrton Montarroyos
Edição: Kuarup
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ Ambicioso e conceitual, o álbum A lira do povo confirma Ayrton José Montarroyos de Oliveira Pires como um dos maiores nomes da música brasileira do século XXI, ainda que haja risco em situar o cantor recifense no momento atual pela alma antiga do artista.
A rigor, Ayrton Montarroyos fará somente 29 anos em 27 de junho, mas já parece ter mais de 60 anos – e isso é um elogio a este senhor intérprete que segue indomado, na contramão do banalizado e automatizado mercado da música.
Em A lira do povo, se contabilizadas as citações de músicas, Ayrton alinha 26 composições em três suítes temáticas – Suíte I – Mítica [das coisas do interior do homem], Suíte II – Lírica [da viagem, o mar profundo e suas incertezas] e Suíte III – Épica [do encontro consigo, da finitude, as cidades] – que totalizam nove faixas e traçam o percurso dolorido do bicho homem que sai do sertão para a cidade, passando pelo mar.
O repertório selecionado vai de 1914 a 2020, mas está centrado em músicas apresentadas entre os anos 1950 e 1970. O recorte é sintomático, já que, a partir da década de 1980, a MPB se diluiu, perdeu a hegemonia mercadológica e foi empurrada para a margem.
É nessa margem que transita Ayrton Montarroyos com o canto grave, pautado pelo já notório rigor estilístico. Nada soa óbvio ou trivial no percurso trilhado pelo intérprete em A lira do povo, álbum que sai na sexta-feira, 7 de junho, com o registro de estúdio do homônimo show estreado em novembro de 2023.
Com direção artística de Ayrton e produção musical de Arquétipo Rafa (percussões, baixo, sintetizador, samples e coro), ambos autores dos inebriantes arranjos criados em parceria com Ariane Rodrigues (flautas, pífanos, baixo e coro) e Rodrigo Campos (violões de aço), o álbum A lira do povo faz um movimento próprio ao entrelaçar as músicas em geral pouco gravadas.
Contracantos, dissonâncias e harmonizações inusitadas são pedras que pavimentam o caminho original seguido pelo solista, cujo canto dialoga no percurso com as vozes do coro formado por Mari Tavares, Rhaissa Bittar e Tatiana Burg.
Partindo d’O trenzinho do caipira (Heitor Villa-Lobos com letra posterior de Ferreira Gullar, 1978), a Suíte I – Mítica [das coisas do interior do homem] ocupa três das nove faixas do disco ao se embrenhar pelo sertão nordestino, retratado como lugar escuro e sem futuro em Viola fora de moda (Edu Lobo e José Carlos Capinan, 1973), tema de terra castigada por sede de água e de vingança, esta simbolizada pela citação de Antonio das Mortes (Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, 1964).
Além das violas já fora de moda, o sertão também é terra de passarinhos cantadores que ecoam mágoas e desilusões amorosas que, no disco, reverberam nas lembranças de Guriatã de coqueiro (Severino Rangel, 1930) e Passarinho (João do Vale e José Lunguinho, 1979), canto de saudade que deságua na melancolia interiorizada no canto triste de La Paloma (Sebastian Yradier em versão em português de Pedro de Almeida, 1914).
Na sequência, Ayrton Montarroyos pega Estrada do sertão (João Pernambuco e Hermínio Bello de Carvalho, 1985) – na companhia de Alaíde Costa – e desemboca em Última mentira (Fagner e José Carlos Capinan, 1975), faixa melodramática que tem a temperatura do flamenco.
Ocupando duas faixas, a Suíte II – Lírica [da viagem, o mar profundo e suas incertezas] pega o trilho do disco a partir da até então esquecida Canção passarinho (Luis Violão, 1977) para seguir na correnteza dos rios e mares com os sopros e pifanos de Ariane Rodrigues, mas sem alívio para alma do viajante.
As águas também trazem à tona tormentas, poetizadas em Arrebentação (Sérgio Ricardo, 1971) e amplificadas na voz de Inezita Barroso (1925 – 2015), ouvida na gravação de Temporal (Paulo Ruschell, 1956).
Uma vez na cidade, território das quatro faixas da Suíte III – Épica [do encontro consigo, da finitude, as cidades], o viajante se depara com máscaras no rosto e farsas de alegria na avenida trilhada por Gás neon (Gonzaguinha, 1974), faixa cantada por Ayrton com a adesão de Alaíde Costa.
Nessa avenida asfixiante, O ferroviário (César e Cirus, 1973) reconstitui a agonia diária do trabalhador no sistema capitalista do país do Carnaval. O arranjo mântrico sublinha as tensões do tema que, em link sagaz, desemboca na citação do frevo É de fazer chorar (Luiz Bandeira, 1957), flash do fim da folia.
Na sequência, o medley com Macauã (Sérgio Ricardo, 1974) e Plataforma (Yuri Queiroga, 2012) reforça a sensação de que Ayrton Montarroyos jamais facilita para o ouvinte.
Ao contrário: por exigir atenção e concentração para que a lírica seja seguida e compreendida, A lira do povo é disco que soará difícil ou mesmo indigesto para ouvidos já habituados ao tatibitate musical cotidiano – sobretudo quando, no trilho final, o álbum marcha cada vez mais na contramão para expor solidões e descidas aos porões existenciais na sequência que junta Febre do rato (Kiko Dinucci, 2020) e o descontruído samba-canção Conceição (Jair Amorim e Valdemar de Abreu, o Dunga, 1956), antes de expor a morte em caras paradas na solidão de As ilhas (Astor Piazzolla e Geraldo Carneiro, 1975).
Contudo, quem segue a lírica do disco até o fim perceberá que se trata de obra-prima que vai contra as mãos padronizadoras da indústria da música. É nesse percurso dissidente e dissonante que Ayrton Montarroyos se mantém elevado, indomado e rigoroso no álbum A lira do povo.
Ayrton Montarroyos lança o álbum ‘A lira do povo’ na sexta-feira, 7 de junho, em edição da gravadora Kuarup
Luan Cardoso / Divulgação

Fonte da Máteria: g1.globo.com