
Há um lado secreto do YouTube, que vai além do algoritmo — e não é nada parecido com o que você conhece. A grande maioria dos cerca de 14,8 bilhões de vídeos da plataforma praticamente nunca foi vista. Até agora. Há um lado secreto do YouTube, que vai além do algoritmo — e não é nada parecido com o que você conhece
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Este ano marca o 20º aniversário do YouTube. Desde seu início modesto como um espaço para amadores, o YouTube se transformou em uma plataforma de vídeos tão colossal que a empresa se autodenomina a nova Hollywood.
O YouTube é o serviço de streaming de TV número um do mundo, onde os usuários assistem bilhões de horas de conteúdo todos os dias. A audiência dos principais youtubers supera com frequência a dos grandes estúdios.
Para efeito de comparação, estima-se que 823 milhões de ingressos de cinema foram vendidos nos EUA e no Canadá em 2024. Enquanto isso, somente o vídeo de maior sucesso do MrBeast acumulou 762 milhões de visualizações, cerca de uma visualização para cada 10 pessoas no planeta.
Essa é a visão do YouTube que a empresa promove — habilidosa, profissional, divertida e estrondosa — mas, de uma perspectiva, tudo isso é uma fachada.
Por outro ângulo, a essência do YouTube é mais parecida com um vídeo de 2020 que eu vi. Antes de eu assistir, ele só tinha sido visualizado duas vezes. Um homem aponta a câmera para fora da janela do seu quarto enquanto uma tempestade começa no auge do inverno.
“Aqui está”, diz ele. “A neve caindo.” O som de uma TV é reproduzido ao fundo. Um pássaro pousa em uma cerca próxima. 19 minutos se passam. Nada acontece.
“As conversas que estamos tendo sobre o YouTube são baseadas em uma visão limitada do que a plataforma realmente é”, diz Ryan McGrady, pesquisador da Iniciativa para Infraestrutura Pública Digital da Universidade de Massachusetts Amherst, nos EUA.
“Quando nos concentramos apenas no que é popular, perdemos a noção de como a grande maioria das pessoas, na verdade, usa o YouTube para fazer uploads, e ignoramos o papel que ele desempenha em nossa sociedade.”
Passei o último mês mergulhado em uma das primeiras amostras verdadeiramente aleatórias do YouTube já coletadas fora da empresa. Vi um lado da internet que, às vezes, parece perdido, um lado repleto de uma autoexpressão genuína, sem filtros. É um mundo inteiro que o algoritmo do YouTube, que tudo vê, não mostra a você.
“O YouTube não é apenas um veículo para profissionais”, afirma McGrady. “Contamos com ele como o braço de vídeo padrão da internet. O YouTube é uma infraestrutura. É uma ferramenta essencial que as pessoas comuns usam para se comunicar.”
Para desvendar esse lado do YouTube, McGrady e seus colegas criaram uma ferramenta que busca vídeos aleatoriamente. O mecanismo vasculhou mais de 18 trilhões de URLs potenciais antes de coletar uma amostra grande o suficiente para uma análise científica real.
Entre as descobertas, os pesquisadores estimam que o vídeo mediano foi assistido apenas 41 vezes; as postagens com mais de 130 visualizações estão, na verdade, no terço superior do conteúdo mais popular do serviço. Em outras palavras, a grande maioria do YouTube é praticamente invisível.
A maioria destes vídeos não foi feita para ser vista por nós. Eles existem porque as pessoas precisam de um sótão digital para armazenar suas memórias. É uma internet que não é moldada pelas pressões de cliques e algoritmos — um vislumbre de um lugar onde o conteúdo não precisa ter desempenho, onde ele pode simplesmente existir.
No ambiente selvagem
Doze anos atrás, uma mulher dos EUA chamada Emily publicou um vídeo no YouTube chamado “sw33t tats”. Descobri que o conteúdo é ainda mais antigo, gravado por volta de 2008. No vídeo, Emily, que pediu para não revelar seu nome completo, está sentada em seu dormitório na faculdade. Ela mantém a boca aberta enquanto sua irmã mais nova pega uma caneta para escrever algo na parte interna do lábio dela.
“Pare de se mexer!”, grita a irmã enquanto começa a escrever, e as meninas mal conseguem segurar o riso. Emily exibe o lábio aberto para a câmera, e sua irmã faz o mesmo, revelando sua própria “tatuagem”. Mas a imagem está desfocada; o que quer que essas tatuagens falsas tenham dito se perdeu no tempo.
Emily, hoje com 34 anos e morando na cidade de Nova York, havia esquecido que esse vídeo existia até eu perguntar a ela sobre ele. “Nem me lembro por que fiz o upload”, diz ela. “Acho que queria enviá-lo para minha irmã, mas também precisava liberar espaço no meu disco rígido. Eu só precisava de um lugar para colocá-lo. Não sei, é engraçado e estranho. Fico feliz que ainda esteja aqui.”
“Temos a tendência de supor que o motivo para usar a rede social é tentar ser um influenciador, ou você é o Joe Rogan ou é um fracasso. Mas essa é a maneira errada de pensar sobre isso”, afirma Ethan Zuckerman, que lidera a pesquisa sobre o YouTube como diretor da Iniciativa para Infraestrutura Pública Digital da Universidade de Massachusetts Amherst.
O YouTube disse à BBC que é incorreto afirmar que a plataforma não permite que você veja vídeos com poucas visualizações ou conteúdo de canais pequenos. A função do algoritmo é ajudar as pessoas a encontrar os vídeos que desejam assistir e que vão agregar valor a elas, acrescenta o YouTube, e às vezes isso inclui vídeos com um número pequeno de visualizações.
“A mágica do YouTube é que, independentemente de um vídeo ter 60 visualizações ou seis milhões, as pessoas podem encontrar uma comunidade, aprender uma nova habilidade, se divertir ou compartilhar sua voz com o mundo”, afirma Boot Bullwinkle, porta-voz do YouTube. “Todos os canais começam da mesma folha em branco, a partir da qual podem criar um público e desenvolver um negócio.”
Zuckerman e seus colegas não foram os primeiros a vasculhar o submundo do YouTube. Entre 2009 e 2012, por exemplo, os iPhones incluíram um recurso que permitia aos usuários publicar vídeos diretamente no YouTube com apenas alguns toques. O YouTube informou que os uploads móveis aumentaram 400% por dia.
A menos que as pessoas adicionassem um título personalizado, o nome de todos esses vídeos seguia um formato padrão, o que os torna facilmente pesquisáveis mais de uma década depois. Alguns usuários online exploraram esses vídeos, que aparentemente chegam a milhões. Um deles até criou um player customizado que os exibe alternadamente.
Sem as recomendações do algoritmo, você descobre que o YouTube é um estudo do cotidiano, diz Zuckerman, pessoas documentando pequenos momentos de suas vidas e usando as ferramentas disponíveis para trocar ideias.
No Sul da Ásia, por exemplo, Zuckerman diz que o YouTube e redes semelhantes parecem funcionar como uma ferramenta de mensagens de vídeo para pessoas com pouco ou nenhum conhecimento. A maior parte do YouTube vem de fora dos EUA, na verdade. O laboratório de Zuckerman estima que mais de 70% dos vídeos do YouTube estão em idiomas diferentes do inglês.
Você encontra pescadores na América do Sul acenando de um barco, ou dois operários da construção civil falando em hindi sobre a saudade que sentem de casa. Vídeos como estes se enquadram na categoria de conteúdo que ele chama de “amigos e família”, em que todos os comentários e interações vêm de pessoas que parecem conhecer o usuário pessoalmente.
“Se algum desses vídeos se tornasse viral, significaria que algo deu terrivelmente errado. Não é para isso que serve a maior parte do YouTube”, explica Zuckerman.
Pequenos momentos
A maior parte do YouTube não assistido é menos divertida do que o “sw33t tats”, o que, com todo o respeito à Emily, é um patamar baixo. O conteúdo é sem graça o suficiente para derreter seu cérebro.
Uma noiva se prepara para uma sessão de fotos. Um coreano ranzinza desabafa sobre política. Seis segundos de um instrutor de artes marciais, desprovido de contexto. Imagens da câmera no painel de um carro com dificuldade para sair de uma vaga no estacionamento. Uma mulher anuncia um cavalo para venda em 2018. Gravações de tela intermináveis e banais de videogames — o estudo da Universidade de Massachusetts Amhurst descobriu que as pessoas jogando videogames parecem representar quase 20% do YouTube.
De vez em quando, você se depara com algo divertido ou, mais frequentemente, simplesmente estranho. Três homens dando tapas de forma performática nos traseiros uns dos outros ao som de uma música de James Brown.
Uma mulher avalia uma marca de mortadela fatiada (não é “tão ruim”). Ou vejamos o caso do canal “Space Stuff and Other Stuff”, que pode ser traduzido como “Coisas espaciais e outras coisas”, no qual um garoto faz um rap sobre o planeta Netuno e compartilha suas condolências após o falecimento da rainha Elizabeth 2ª. Aparentemente, este último vídeo se enquadra na categoria “outras coisas”.
Alguns vídeos são de cortar o coração. Ouvi um homem idoso descrever como está vivendo em um carro em uma fazenda, trocando trabalho manual por um lugar para ficar.
Houve uma homenagem comovente a um gato que morreu. “Kiko não sobreviveu”, diz Tyler, seu dono, segurando as lágrimas. “Está tudo tão silencioso aqui sem ele”.
Depois de algumas dezenas de vídeos, parei para assistir a uma jovem bailarina flutuando delicadamente pelo palco, indo e voltando na frente de uma multidão silenciosa.
“Como pesquisadores, passamos muito tempo com esse material. Pode ser muito parecido com ver as fotos pessoais dos outros”, diz Zuckerman.
“A maior parte é entediante, mas às vezes é comovente e até assombroso. E, de vez em quando, você encontra algo que parece incrivelmente revelador sobre como os seres humanos se comunicam.”
Mas meus vídeos favoritos foram, de longe, os de Bill “The WoofDriver” Hellman. Ele tem 58 anos e trabalha no setor imobiliário nos arredores de Baltimore, nos EUA. Mas essa não é sua paixão. O que realmente interessa a Hellman são seus cães, e a maneira única como cuida deles. “Você nunca viu nada assim antes”, diz ele em um vídeo. Garanto que ele está certo.
Hellman construiu mais de 50 veículos personalizados que ele usa para levar seus quatro huskies para o que ele chama de “corrida de trenó urbana”. Ele usa a rede social para documentar suas aventuras nas trilhas do leste dos EUA.
A cena se parece um pouco com as corridas de trenós puxados por cães de Iditarod (uma famosa corrida anual no Alasca).
Só que aqui, os cães geralmente são amarrados na lateral de suas várias engenhocas lentas, bicicletas reclinadas e carrinhos elétricos para passear com cachorros. Pelo que parece, os cães de Hellman gostam de participar.
Ele postou mais de 2,4 mil vídeos no YouTube nos últimos 14 anos, muitos dos quais incluem canções de rock originais. (Hellman diz que compôs mais de 100 músicas do WoofDriver, na verdade.) Ele se dedica muito a isso, saindo com drones e grupos de amigos para documentar suas jornadas.
Hellman até pagou para receber o apoio de celebridades por meio da plataforma Cameo para promover seus vídeos. Mas, apesar de todo o esforço, seu canal costuma despertar pouco interesse. Muitos vídeos têm visualização na casa dos dois dígitos.
“Na maioria das vezes, não tenho uma audiência grande, mas isso não me incomoda. Eu fiquei tão entusiasmado com a felicidade que isso gerou nos cachorros que, em algum momento, pensei: ‘Preciso compartilhar isso'”, conta Hellman.
“Talvez isso inspire alguém a cuidar melhor de seus cães, mas, na verdade, eu uso o YouTube como uma nuvem, para ter um lugar para documentar minhas aventuras.”
O YouTube não paga as contas, e o WoofDriver não está vendendo nada — embora ele tenha prazer em compartilhar as dimensões caso você queira construir seu próprio trenó urbano para cães. “Eu só faço isso por causa da alegria que me traz”, diz Hellman.
‘Se você procurar, vai encontrar’
O YouTube aleatório geralmente não se parece com os vídeos altamente produzidos do WoofDriver, mas ele é uma boa representação em um aspecto. Assim como o conteúdo de Hellman, a maior parte do teor destes vídeos “invisíveis” do YouTube varia de neutro a extremamente positivo.
O mesmo não pode ser dito sobre o que chega ao topo. Pesquisas sugerem que o algoritmo do YouTube amplifica a negatividade, reforça estereótipos e oferece aos usuários pouco controle sobre o conteúdo que eles não querem ver.
Ao longo dos anos, o YouTube tem enfrentado cada vez mais críticas sobre preocupações relacionadas a discurso de ódio, extremismo político e desinformação. Assim como outras plataformas de rede social, o YouTube tem sido usado por cartéis de drogas e terroristas como uma ferramenta de promoção e recrutamento.
O YouTube afirma que a empresa emprega um conjunto de diretrizes para a comunidade desde seus primórdios para estabelecer o que é permitido na plataforma. A empresa diz que redobrou os esforços para lidar com suas responsabilidades.
Uma forma de o YouTube medir seu sucesso é por meio da sua “taxa de visualização de conteúdo com violações”. Em 2017, para cada 10 mil visualizações no YouTube, de 63 a 72 visualizações vinham de conteúdo que violava as políticas do YouTube, mas hoje este número caiu para de oito a nove visualizações, de acordo com a empresa.
O YouTube diz que oferece aos usuários várias maneiras de gerenciar as recomendações e os resultados de pesquisa da plataforma, como a exclusão do histórico de exibição.
Os vídeos ‘não assistidos’ do YouTube são um documentário oculto da vida humana
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Quando a Iniciativa para Infraestrutura Pública Digital decidiu estudar o YouTube, parte do ímpeto foi documentar o quão comum é o discurso de ódio e a desinformação na plataforma.
“Se você procurar, vai encontrar”, diz McGrady. Mas, em comparação com o total de vídeos no YouTube, isso é extremamente incomum. Ainda assim, não importa o quão raro seja um vídeo prejudicial se ele obtiver milhões de visualizações, acrescenta McGrady. Por isso, o conteúdo prejudicial continua sendo um problema grave no YouTube.
Nos últimos anos, o Google enfrentou uma onda de escrutínio por parte de formuladores de políticas públicas, com novas leis e uma enxurrada de regulamentações propostas — sem mencionar uma série de processos antitruste. Mas quando o debate sobre regulamentação se volta para os vídeos no YouTube, o foco é quase sempre o conteúdo que se torna viral, diz McGrady.
Isso ignora as obrigações que o YouTube deveria ter porque, de acordo com ele, a empresa está gerindo uma infraestrutura essencial.
“A internet é profundamente problemática, e não podemos ignorar a maneira como as empresas de tecnologia estão exacerbando esses problemas”, observa McGrady.
“O que me deixa esperançoso é que quando você encontra uma maneira de ver como as pessoas estão realmente usando a web, grande parte ainda parece com os primórdios da internet. É expressão, comunicação, conexão. Basicamente, é um lugar em que pessoas comuns compartilham entre si e fazem coisas maravilhosas.”
O YouTube sobre o qual falamos — aquele repleto de celebridades, escândalos e conteúdo viral fabricado — conta apenas parte da história. A maior parte existe em momentos de silêncio, em cinegrafistas trêmulos e vozes destinadas a ninguém em particular.
Assisti a centenas destes vídeos. Cada um deles está aberto ao público, mas também está claro que a maioria das pessoas não fez o upload deste conteúdo para estranhos. Foi como se eu estivesse descobrindo um segredo, um documentário extenso e sem curadoria da vida humana.
Mas assisti-los também me pareceu um trabalho, em comparação com o entretenimento gerado pelo doomscrolling — hábito de rolar o feed sem parar, não importa quão nocivo seja o conteúdo — que você obtém com o algoritmo. Por fim, fechei as abas do meu navegador, e voltei para a página inicial do YouTube, de volta ao mundo polido da internet corporativa.
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Fonte da Máteria: g1.globo.com