Para muitos, ele é casamenteiro. Para os mais devotos católicos, é milagroso. Para a Igreja, é a figura que detém o recorde da canonização mais rápida da história. Conheça a vida e a obra deste intelectual notável que circulou por parte considerável da Europa do século 13 consolidando o papel dos franciscanos, cuja ordem havia acabado de ser fundada.
Para muitos, é santo casamenteiro — folclore e tradições populares são pródigos em reservar a ele toda sorte de simpatias para trazer, para sempre enquanto dure, aquele amor perfeito. Para os devotos católicos, é um santo milagroso, daqueles mais eficientes na intercessão junto a Deus.
Para a Igreja, é a figura que detém o recorde da canonização mais rápida da história. Para a historiografia, foi um homem notável do seu tempo: intelectual, o frade circulou por parte considerável da Europa do século 13 e ajudou a consolidar o papel dos franciscanos, cuja ordem havia acabado de ser fundada.
Este personagem é Santo Antônio de Pádua — assim chamado por aqueles que preferem enfatizar o auge de sua vida. Ou Santo Antônio de Lisboa — como preferem sobretudo os portugueses, enaltecendo suas raízes.
Se muito de sua vida, oito séculos mais tarde, se mistura com lendas, relatos extraordinários e fé religiosa, fato certo e comprovado é que o frade franciscano morreu em uma sexta-feira, no dia 13 de junho de 1231.
“Ele era um homem bastante erudito mas, mesmo assim, mesmo muito ortodoxo em sua postura de combate às heresias, ele foi acometido dessa aura de um taumaturgo, alguém que tinha habilidade de manipular os poderes da natureza”, contextualiza à BBC News Brasil o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Com o passar do tempo, várias camadas narrativas foram sendo colocadas neste homem. A história dos santos é muito recheada dessas narrativas que vão sendo acrescentadas, somadas, transformando aquilo num ícone.”
Em terras brasileiras, a devoção antoniana ganhou seu próprio sotaque. O sincretismo fez dele uma figura simpática a outras religiões fora do catolicismo.
E o folclore garantiu ao santo lugar de honra, seja na hora de pendurar sua imagem de cabeça para baixo até que um namorado dos sonhos apareça, seja em formatos de orações características, como a trezena — treze dias de rezas dedicadas a ele ou no considerado infalível “responso”, cujo texto original é atribuído a um frade italiano chamado Giuliano da Spira, que viveu no século 13 e teria escrito a oração dois anos após a morte do santo.
No Dicionário do Folclore Brasileiro, o sociólogo, antropólogo e historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) registrou uma das tantas versões da oração, originalmente em latim, no português coloquial.
“Quem milhares quer achar/ Contra os males e o demônio/ Busque logo a Santo Antônio/ Que só o há de encontrar”, dizem os primeiros versos.
“Seu nome batiza igrejas, ruas e continua sendo um dos mais escolhidos para menino, em Portugal e Brasil”, aponta Cascudo. “Rara será a cidade, vila ou povoado sem uma rua de Santo Antônio ou uma igreja de Santo Antônio, em todas as terras do idioma português.”
Em 2019, um sacerdote italiano que atuava na cidade de Pádua comentou informalmente com este repórter que a fama de Antônio junto aos fiéis, em especial os brasileiros, advém desta maneira simples e brejeira como se desenvolveu a relação de fé com ele — entre simpatias que mais parecem travessuras.
“Essas coisas, para quem vê de fora, podem parecer heresia ou falta de respeito. Mas, na verdade, aproximam o santo do povo. É como se ele não estivesse no altar, inacessível e distante, mas preferisse se sentar no banco da igreja, ao lado do fiel, como um amigo, um companheiro, alguém de confiança”, filosofou o religioso.
“No Brasil, a religião nunca foi austera, sempre foi uma religiosidade com características populares”, completa Moraes. “A religião no Brasil se desenvolveu muito nessa coisa da proximidade, da relação quase desrespeitosa com o sagrado, mas ao mesmo tempo muito íntima.”
Autor do livro Santo Antônio: Por Onde Passa, Entusiasma, o vaticanista italiano Domenico Agasso Jr. concorda que chama a atenção o fato de a figura de Santo Antônio, ainda no século 21, conservar grande relevância.
“A primeira razão reside sobretudo no fato de ele não ter sido um menino ‘santo’, mas sim ter passado por uma transformação interior e exterior na juventude — e isso o coloca como uma mostra de que Deus é acessível a todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares”, comenta ele, à BBC News Brasil.
“São muitos os que contam que, graças a Antônio, compreenderam uma coisa fundamental: só por meio da caridade podemos viver verdadeiramente na alegria”, prossegue ele.
“É por isso que Antonio ainda é muito amado. É uma presença que continua a gerar alegria. As pessoas sentem que ele é um pai, uma referência acolhedora e encorajadora, uma fonte inesgotável de esperança contra a resignação, o desespero, os medos.”
A seguir, cinco curiosidades sobre este religioso cuja fama transcende o catolicismo.
1. Ele não morreu em Pádua, mas em Capo di Ponte
De acordo com relatos de seus contemporâneos, Antônio sofria de um quadro de hidropisia, ou seja, acúmulo de fluidos corporais.
Na antiguidade, costumavam serem diagnosticados assim muitos distúrbios de circulação sanguínea — e o quadro, sabe-se hoje, é causa de edemas generalizados e pode acarretar insuficiência cardíaca congestiva.
Antônio era um homem na faixa dos 40 anos — há dúvidas sobre sua data de nascimento —, mas a condição de saúde associada à rotina de peregrinações, jejuns e penitência faziam-no parecer mais velho. Cansado depois de uma intensa quaresma naquele ano, ele havia solicitado, em maio, um período de descanso a seus superiores.
Em 19 de maio de 1231, recolheu-se então na propriedade de um nobre da região, conde Tiso VI (?-1234), em Camposampiero, a 20 quilômetros de Pádua, no norte da Itália, onde vivia.
Conforme conta a primeira crônica biográfica sobre o santo, publicada pela Ordem dos Frades Menores em 1232, Beati Antonii Vita Prima, ele parecia muito fraco naquela manhã de 13 de junho e desmaiou. Foi acomodado em uma cama rudimentar, de palha. Quando recobrou a consciência, pediu que o levassem de volta a Pádua, onde teria a assistência de irmãos religiosos.
Foi colocado então sobre um carro de boi. No caminho, contudo, com o frade visivelmente agonizando, os que o acompanhavam no traslado decidiram parar em um convento localizado em um pequeno burgo, na época chamado de Capo di Ponte — hoje, bairro de Arcella, no subúrbio de Pádua.
E foi ali, numa cela da pequena casa religiosa, que o santo morreu. Só depois foi levado para a Pádua que se tornaria famosa por conta dele.
Depois de atuar em diversas cidades — há registros comprovados de sua passagem por 37 localidades, hoje pertencentes a nações como Portugal, Espanha, Marrocos, Itália e França, mas é altamente provável que suas andanças como pregador tenham chegado a locais nas atuais Alemanha, Suíça, Eslovênia e Áustria —, foi no ano anterior à sua morte que Antônio decidiu resignar ao posto de provincial dos franciscanos em Milão e escolheu Pádua para viver.
Mesmo a cidade italiana, hoje com 211 mil habitantes, tendo sido endereço em algum momento inúmeros personalidades de vulto, como Nicolau Copérnico (1473-1543), Cristóvão Colombo (1451-1506) e Galileu Galilei (1564-1506), é inegável que a maior parte dos turistas que a visitam atualmente estão em busca de Santo Antônio — ou, como se diz por lá, simplesmente Il Santo, “O Santo”.
2. Ele não nasceu em 1195, como a tradição acabou consagrando
Não há um consenso sobre a data exata de nascimento de Santo Antônio. A tradição católica havia consagrado o dia 15 de agosto de 1195. Hoje, especialistas concordam que o dia tenha sido inventado em algum momento, intencionalmente no mesmo 15 de agosto que a Igreja celebra a festa da Assunção de Nossa Senhora.
No seu livro Santo Antônio: Vida, Milagres, Culto, Frei Basílio — cujo nome civil era Hugo Röwer (1877-1958) — escreveu que “a circunstância de ter nascido no dia festivo da Assunção de Nossa Senhora foi o presságio de sua terna devoção à Maria Santíssima, cuja Assunção gloriosa ao céu iria mais tarde pregar nos seus sermões e com cujo hino nos lábios iria transportar o limiar da eternidade”.
Já o frade português Fernando Félix Lopes, em seu Santo António de Lisboa: Doutor Evangélico, adota o ceticismo mais compatível com o que se entende como verdade atualmente: “eu diria que foi o povo quem imaginou a data de modo tão preciso”, pontuou, consciente da precária documentação existente.
Em 1981, durante as celebrações pelos 750 anos de sua morte, o Vaticano autorizou que seus restos mortais, sepultados na basílica a ele dedicada em Pádua, fossem exumados para análise científica.
Exames antropométricos foram então realizados, por uma junta de pesquisadores, alguns ligados à Santa Sé, outros vinculados à Universidade de Pádua. A principal conclusão: o material era compatível com um homem de mais de 40 anos.
Seus biógrafos passaram então a situar seu nascimento como tendo sido provavelmente em 1188. Isto tornaria compatíveis com a realidade diversas datas sobre as quais há registros em sua vida, como seus ingressos às ordens religiosas — primeiro, ele foi agostiniano; depois, franciscano — e sua ordenação sacerdotal. Se for admitido o nascimento em 1195, é preciso crer nele um prodígio capaz de ter abreviado etapas de estudo, galgando degraus em idade inferior ao usual para a época.
As incertezas, contudo, persistem até em locais onde essas informações poderiam dirimir dúvidas. Inaugurado em 2014 no centro de Lisboa, o Museu de Lisboa: Santo Antônio afirma, no site, que o religioso nasceu em 1195, embora admita que o 15 de agosto tenha sido uma tradição, possivelmente criada no século 17. Em letreiro afixado no memorial, por outro lado, a instituição diz que Antônio veio ao mundo em 1191.
Em 2014, novos estudos científicos foram realizados nos restos mortais de Antônio, por pesquisadores do Museu de Antropologia da Universidade de Pádua, em parceria com o Centro de Estudos Antonianos e com o grupo Arc-Team Open Research.
O designer brasileiro Cícero Moraes foi encarregado de fazer, por computação gráfica, a reconstituição facial tridimensional fidedigna do santo. Mais uma vez, a confirmação: tratava-se de um homem de mais de 40 anos.
O que não há dúvidas, contudo, é que seu nome de batismo era Fernando, e não Antônio. Muito provavelmente, a julgar inclusive por ter tido acesso a estudos básicos em uma época de parcos escolarizados, filho de uma família importante da sociedade lisboeta da época.
Diversos pesquisadores concordam que seu nome completo era Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo.
Quando decidiu ingressar para a vida religiosa, Fernando buscou o Mosteiro de São Vicente de Fora, mantido pelos cónegos regrantes de Santo Agostinho. Sua entrada para o convento está nos registros históricos da instituição devidamente preservados pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
“Em 1210, professou em São Vicente aquele que viria a ser Santo Antônio de Lisboa”, afirma o verbete.
A vida junto aos agostinianos foi o que conferiu erudição ao jovem religioso. Teve acessos a livros e ensino não só de teologia e doutrina católica, mas também de história, astronomia, medicina, matemática, retórica e letras jurídicas.
Insatisfeito com as limitações do convento, Fernando solicitou transferência para o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra — o que aconteceu entre o fim de 1211 e início de 1212. Trata-se da mais antiga casa agostiniana de Portugal, fundada em 1131. E ficava na cidade que era então a capital de Portugal.
“Ele era de origem nobre, e [tornou-se] um intelectual bem preparado. Era professor de teologia. Vivia como Fernando em um mosteiro […] onde o estudo e a ciência eram prioridades. Mas ficou impressionado com a vida dos seguidores de Francisco de Assis, e ao se tornar franciscano, atraído pela simplicidade, revelou-se em uma tal humildade que, no começo, nem os confrades desconfiaram do grande intelectual que estava no meio deles”, conta à BBC News Brasil o teólogo Luiz Carlos Susin, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana.
Esta mudança para a Ordem dos Frades Menores, ou seja, a transformação de agostiniano em franciscano, ocorreu em algum momento entre junho e agosto de 1220. Em um sinal de que deixava a vida pregressa para trás, Fernando assumiu nova identidade. Escolheu Antônio.
O nome tinha motivos, é claro. O eremitério franciscano em Coimbra, local hoje ocupado pela Igreja de Santo Antônio dos Olivais, era chamado de Santo Antão — em sua forma latina, Antonius. Santo Antão do Deserto (251-356), conhecido como “pai de todos os monges”, foi um religioso considerado pela Igreja como o precursor da vida monástica. Assim, Antônio homenageava também, de certa forma, os agostinianos que deixava para trás, já que Santo Agostinho bebeu na fonte de Antão ao criar sua regra monástica.
O relato Beati Antonii Vita Prima explica de forma poética esse momento. “Assim foi o próprio Antônio em pessoa, que, substituído o vocábulo, se impôs o nome e com ele, por um feliz presságio, designou qual havia de ser o arauto da palavra de Deus”, afirma o texto.
“Antônio, pois significa por assim dizer aquele que atroa os ares. E na realidade a sua voz, qual trombeta portentosa, quando expressava entre os doutos a Sabedoria oculta no mistério de Deus, proclamava com ênfase tais e tão profundas verdades das Escrituras, que mesmo, e nem sempre, o exegeta poderia compreender a eloquência da sua pregação.”
3. Nenhum dos 53 milagres de sua canonização tem a ver com casamento
Nem bem foi sepultado em Pádua, no dia 17 de junho de 1231, começaram a pipocar pela região relatos de milagres atribuídos à intercessão daquele que já era chamado de santo ainda em vida. Seu túmulo começou a atrair devotos e pagadores de promessa.
Menos de um mês após sua morte, o bispo Jacopo Corrado (?-1239) solicitou ao papa Gregório 9° (1170-1241) que abrisse um processo para canonizar o frade. Admirador dos franciscanos, o sumo pontífice, que havia conhecido Antônio em vida, aceitou. Mas houve uma resistência na cúpula da Igreja.
O maior problema seria canonizar, quase que sequencialmente, dois frades franciscanos — além de tudo, uma ordem fundada há tão pouco tempo, em 1209. Francisco de Assis (1181 ou 1182-1226) havia sido oficializado santo, pelo mesmo papa Gregório 9°, em 1228.
A celeuma político-clerical foi contornada com um apelo popular materializado em enxurrada de histórias de milagres. Em uma época em que os processos de canonização careciam das padronizações metodológicas hoje existentes, o papa mandou criar duas comissões: em Pádua, conferiu poderes ao bispo Corrado e aos superiores dos beneditinos e dos dominicanos para que reunissem casos milagrosos e examinassem as pessoas que se diziam curadas; em Roma, designou dois cardeais para analisarem os relatórios.
A esses esforços foram juntados documentos produzidos por dois cardeais que, em visita à região de Milão, também coletaram narrativas de prodígios ocorridos, de acordo com a fé popular, graças a Antônio.
O documento que serviu para justificar sua canonização acabou reunindo, depois desses crivos, 53 milagres atribuídos a sua intercessão. A grande maioria dizia respeito a problemas de saúde, de paralisias a surdez, passando pela fantástica história de uma menina que teria morrido afogada e voltado a viver. Alguns dos casos listados, contudo, são mais prosaicos — como o de uma taça de vidro atirada contra a parede — apenas para testar o poder do santo — que não teria se quebrado e de tripulantes de um barco à deriva que, em meio a uma tempestade, fiaram-se em Santo Antônio para reencontrar o caminho de volta.
Em 30 de maio de 1232, menos de um ano após a morte do franciscano, papa Gregório 9° anunciou que Antônio já podia ser eternizado no rol dos santos da Igreja. “Em honra e louvor à Santíssima Trindade e para exaltação da santa Igreja, inscrevemos o servo de Deus, Frei Antônio, confessor da Ordem dos Frades Menores, no catálogo dos santos, e ordenamos que a sua festa seja celebrada todos os anos em 13 de junho”, declarou o pontífice.
Em 13 de junho daquele ano, a missa do primeiro aniversário da morte dele foi especial para a cidade de Pádua: não só ele podia ser chamado de santo, como foi lançada ali a pedra fundamental da construção do santuário a ele dedicado: é a base da mesma construção atual, oficialmente Pontifícia Basílica Menor de Santo Antônio de Pádua — que seria concluída apenas em 1310 e, com o passar dos séculos, passou por várias reformas e modificações.
Mas se nenhum dos milagres compilados pelo Vaticano tratava de casamento, de onde veio essa fama? Para hagiógrafos, há algumas explicações. A primeira é que, ainda em vida, ele teria sido um grande opositor dos casamentos combinados por interesse entre famílias, o que ele chamava de mercantilização do sacramento — defendia que os casais fossem formados por amor.
Há ainda uma versão, com contornos de lenda, de que ele teria desviado, certa vez, donativos recebidos pela Igreja, para ajudar uma moça a conseguir dinheiro suficiente para o dote que era necessário ao seu casamento.
“Ele é arranjador de bons casamentos somente em alguns países. Na maior parte dos países europeus e nos Estados Unidos, o santo dos namorados é São Valentim”, lembra o teólogo Susin. “Na biografia de Santo Antônio e nas lendas medievais não há nada que sugira esse título. Mais tarde, porém, o santo de Lisboa e Pádua substituiu, nas lendas populares, o deus romano Mercúrio como o mensageiro de boas notícias, o portador e o intérprete de boas encomendas.”
“Na Itália e em alguns países latinos esta permanece sua qualidade especial”, prossegue. “Talvez o fato de Antônio levar a Palavra de Deus para o povo como boa notícia, e o povo procurar sua palavra, seja a origem do santo que acha o que foi perdido, que acha o que é difícil, e acerta no amor.”
4. Embora fosse contra as armas, acabou virando militar — postumamente
Desde as mais antigas biografias, há ênfase no fato de que Antônio era contrário às armas e qualquer postura bélica. Quando jovem, seu pai teria tentado demovê-lo da ideia de se tornar padre — e a alternativa era que o filho se tornasse militar.
Aos 15 anos, por ordens paternas, o então menino Fernando teria estudado cavalaria e esgrima, mas nunca demonstrou muita aptidão para isso. Já como sacerdote, em diversos sermões defendeu que as Cruzadas ocorrem pelo diálogo, que o convencimento e a conversão fossem resultantes da argumentação, nunca das armas.
Contudo, como em casos de guerra é o santo de casa que faz milagre, é o santo de casa que luta do lado nacional, nos séculos seguintes à sua morte, Antônio passou a ser requisitado por soldados portugueses. As primeiras referências do santo sendo considerado militar no exército português datam de 1623. Durante o reinado de Afonso 6º (1643-1683), em batalhas contra o domínio de Castela, ficou determinado que Antônio fosse “alistado no exército, como seu patrono” e “assentasse praça como soldado”.
A ideia era dar ânimo aos soldados de carne e osso. E, ao mesmo tempo, esses salários funcionavam como verba oficial para algum convento — que ficava com o dinheiro. A partir de então, Antônio passou a galgar posições dentro das forças portuguesas, com direito a novos postos e sucessivos aumentos de salário.
Em 1777, o então comandante do Regimento de Lagos escreveu à rainha Maria 1ª (1734-1816) uma carta bastante curiosa pedindo melhor patente ao santo. “Durante todo o tempo em que tem sido capitão, vai para quase cem anos, constantemente cumpriu seu dever com maior prazer à frente de sua companhia, em todas as ocasiões, em paz e em guerra, e tal que tem sido visto por seus soldados vezes sem-número, como eles todos estão pontos para testemunhar: e em tudo o mais tem-se comportado sempre como fidalgo e oficial”, argumentou ele, dizendo que o capitão Antônio era “muito digno e merecedor do posto de major”, ressaltando que não havia nos registros nada relativo a “mau comportamento ou irregularidade praticada por ele”.
No Brasil, o santo teve cargos em diversas corporações desde os tempos coloniais. Em 1595, seu primeiro posto foi como soldado, na Bahia. A explicação é contada pelo historiador José Carlos de Macedo Soares, no livro Santo Antonio de Lisboa, Militar no Brasil: uma imagem do santo teria protegido portugueses em um episódio envolvendo uma frota holandesa que pretendia invadir a costa brasileira. A partir de então, o santo passou a ganhar salário de soldado naquela região.
Histórias do tipo foram se somando. Há indícios de que só na Bahia tenham sido quatro salários simultâneos. Quando assumiu a capitania de Pernambuco, em 1685, João da Cunha Souto Maior também determinou que Santo Antônio se tornasse soldado — o convento de Olinda tornou-se beneficiário dos vencimentos.
Há relatos de Santo Antônio militar na Paraíba, no Rio e no Espírito Santo. Em São Paulo chegou a coronel, maior patente de sua carreira no país, conforme está manuscrito na página 154 o livro 17 do Arquivo do Estado. O texto, assinado pelo então governador Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão (1722-1798) em 5 de janeiro de 1767 justifica que o gesto é “para aumento da devoção do mesmo santo e à imitação do que se tem praticado nas mais capitanias deste Brasil”.
Com a transferência da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, essas nomeações passaram a se tornar mais abrangentes. Em 1810, o então príncipe-regente João 6º (1767-1826) fez do religioso sargento-mor de todo o exército luso-brasileiro. Em 1813, o santo foi promovido para tenente-coronel de infantaria — os salários eram repassados aos franciscanos do convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro.
A proclamação da República, em 1889, com a oficial separação entre Igreja e Estado, seria o ponto final na bem-sucedida carreira antoniana no exército nacional. Mas o processo não foi imediato. Conforme jornais da época, a legitimidade do holerite de Santo Antônio foi discutida ainda na primeira gestão. Em outubro de 1890, o então ministro da Guerra, Floriano Peixoto (1839-1895), determinou que não fosse anulado o decreto de 1814. “Deferindo a reclamação pelo provincial dos franciscanos, […], vos declaro, enquanto por ato especial não for anulado, o decreto de 26 de julho de 1814, que conferiu a patente de tenente-coronel de infantaria à imagem de Santo Antônio do Rio de Janeiro, deve continuar a pagar-se o soldo a que tem direito”, diz trecho do documento.
Em 1907, o delegado fiscal do Tesouro Nacional, que por um capricho do destino se chamava Antônio de Pádua Mamede, finalmente retirou Santo Antônio das folhas de pagamento. “Não é lícito que a nação continue a pagar aquele soldo […] concorrendo-se, assim, para conservar a crendice que teve o príncipe regente ao expedir aquelas patentes”, justificou.
Mesmo assim, foram cinco anos de idas e vindas até que essa decisão fosse aprovada pelo ministério da Fazenda. A identidade do ministro, aliás, também guardava irônica coincidência: coube a Francisco Antônio de Sales (1863-1933) registrar, na folha 21 do livro 486 da então Diretoria de Contabilidade da Guerra a extinção dos holerites antonianos.
Só que suas patentes não foram revogadas, mesmo sem salário. Em 1924, o presidente Artur Bernardes (1875-1955) cobrou providências ao ministro da Guerra. “O coronel Antônio de Pádua vai quase em três séculos de serviço. Nomeio-o general e ponha-o na reserva”, escreveu, em carta. A partir de então, Santo Antônio passou para a reserva.
5. Ele foi ‘adotado’ pelos brasileiros, por causa dos franciscanos portugueses
Muitos apontam Santo Antônio como o mais populares entre os altares brasileiros. Em 1995, a instituição Associação do Senhor Jesus realizou pesquisa entre católicos praticantes para saber quais são os de maior predileção. Antônio apareceu no topo do ranking, com 20% das respostas — 4 mil pessoas foram ouvidas.
Entre pesquisadores, é unânime a explicação de que a devoção ao santo ganhou popularidade no Brasil por conta da colonização portuguesa. E é altamente provável que a primeira imagem de Antônio tenha sido trazida já pela frota de Pedro Álvares Cabral (1467-1520), em 22 de abril de 1500. Na esquadra, estavam oito frades franciscanos, entre eles Henrique Soares de Coimbra (1465-1532), celebrante da primeira missa em solo brasileiro.
Eram franciscanos como Santo Antônio. Eram portugueses como Santo Antônio. Eram devotos de Santo Antônio. Nas décadas seguintes, conventos franciscanos começaram a se espalhar pela colônia. “De certo modo, todo este histórico contribuiu para a difusão do Santo. Independentemente dos religiosos que nos catequizaram, tem o fato de Santo Antônio ser português e isto era muito motivo de orgulho ao colonizador”, diz à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira, presidente da Academia Brasileira de Hagiologia.
E sua fama acabou se difundindo pelo Brasil. “A figura do santo casamenteiro, do santo das coisas perdidas, suas pregações”, prossegue Lira. “Somando-se a tudo isso, vieram as festas juninas que, embora trazidas pelo colonizador, aqui assumiram conotação própria. Todos esses fatores, mais a presença ininterrupta dos franciscanos no Brasil, contribuíram, em muito, para que Santo Antônio se tornasse um dos santos mais amados e populares.”
“Os franciscanos sempre foram muito importantes no Brasil. Depois da expulsão dos jesuítas, no século 18, se tornaram a ordem religiosa mais influente no país. Era natural que difundissem a devoção a um dos seus maiores santos, que além de tudo era português”, acrescenta à BBC News Brasil o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Por outro lado, Antônio, mesmo entre os franciscanos, é um santo particularmente próximo a São Francisco de Assis. Ambos se voltam para os pobres e desvalidos, falam com animais, são modelos de vida na pobreza.”
“O povo procura santos que sejam próximos às pessoas e a humildade e o apego à pobreza são considerados sinais inconfundíveis dessa proximidade. Sua fama de casamenteiro ilumina essa devoção. A jovem aflita pede ao santo aquilo que é a definição mais importante de sua vida”, diz o sociólogo. “Para os adultos pragmáticos, trata-se de um pedido e de uma insegurança até pueril. A jovem casamenteira é até ridicularizada na tradição popular. Santo Antônio é, portanto, o santo suficientemente poderoso para interceder pelo desejo mais importante da vida, e suficientemente humilde e atencioso para receber aquele pedido que pode parecer pueril e até envergonhado.”
“No Brasil, tornou-se um santo muito popular, muito amado, muito aclamado. Veja a quantidade de pessoas no Brasil que se chamam Antônio e a quantidade de cidades que têm o nome de Santo Antônio”, atenta Moraes.
Trinta e oito municípios brasileiros têm seus nomes em alusão ao santo. Há a cidade de Santo Antônio, no Rio Grande do Norte, ou variações como Santo Antônio do Içá, no Amazonas, ou Santo Antônio do Pinhal, em São Paulo. E duas Novo Santo Antônio, uma no Mato Grosso, outra no Piauí.
Para o frade franciscano Diogo Luís Fuitem, diretor da revista Mensageiro de S. Antônio e autor do livro Antônio: O Santo do Povo, o santo caiu no “gosto popular” do Brasil porque sua mensagem conseguiu “cativar a todos”. “‘Santo casamenteiro’, ‘santo milagreiro’, ‘restituidor de coisas perdidas’…”, elenca ele, à BBC News Brasil. “Esses títulos mostram que ele conseguiu se identificar com o povo necessitado de orientação e de amparo. [Antônio,] em sua breve vida, foi um reflexo da presença de Deus.”
*O jornalista é autor do livro-reportagem ‘Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil’ (Editora Planeta, 2021).
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 13 de junho de 2023.
Fonte da Máteria: g1.globo.com